Amapá é o sétimo em elucidação de crimes, aponta levantamento nacional

Pesquisa Perfil das Polícias, organizada pelo Ministério da Justiça desde 2002, coleta informações anuais para a PM, PC e Bombeiros, e revela um funil da taxa de esclarecimento de crimes.

Tulio Kahn (*)

Um dos indicadores clássicos de desempenho da polícia judiciária em todo mundo é a taxa de esclarecimento de crimes. O conceito de esclarecimento não é unívoco, mas regra geral, entende-se “esclarecimento” como identificação do autor do crime, com elementos suficientemente concretos para se chegar a ele e indiciá-lo criminalmente. Não é preciso que ele seja efetivamente preso para que o caso seja “esclarecido”. Esta é apenas uma modalidade, conhecida por “clearence by arrest”.

Além das divergências conceituais, existem também diferentes modos de calculá-lo: quando o autor é preso em flagrante, o crime já está implicitamente esclarecido. Mesmo quando não há o flagrante, é frequente que casos cheguem ao distrito policial com a autoria praticamente esclarecida, como no caso dos homicídios domésticos ou cometidos entre pessoas que se conhecem. Nestes casos, inexiste na prática o esforço investigativo em busca da autoria do crime. Devemos incluir ou excluir estes flagrantes ou crimes semi-esclarecidos do indicador de desempenho?

Como quer que seja definido ou operacionalizado, ocorre que no Brasil é raro que as polícias estaduais divulguem publicamente este indicador. Algumas o omitem porque são vergonhosos. Outras sequer o calculam internamente, pois nossas polícias não estão habituadas a serem monitoradas através de indicadores e remuneradas pelo atingimento de metas. O fato é que não se sabe ao certo qual é a taxa de esclarecimento de crimes no Brasil, exceto que ela tende a ser baixa e que varia bastante de crime para crime.

Esta percepção de que é importante para as próprias instituições acompanharem seu desempenho no tempo e avaliarem como se posicionam com relação ao benchmark é relativamente recente. O Instituto Sou da Paz realiza um levantamento há três anos sobre a taxa de esclarecimento de homicídios no Brasil. Apenas 11 dos 27 Estados forneceram dados que permitem calcular esta taxa na edição de 2020, para um dos crimes de maior gravidade para a sociedade. A taxa média de esclarecimento de homicídios para este grupo de Estados é de 33%, enquanto na Europa este índice é de aproximadamente 92% e nas Américas 43%. (Os Estados, por ordem de esclarecimento, são DF, MS, SC, RO, SP, ES, MT, PB, AC, PE e RJ). Assim mesmo, os dados foram obtidos através de consulta aos tribunais estaduais e raramente são publicados pelas próprias polícias.

Estamos falando de um crime onde é comum que vítimas e autores tenham algum tipo de relação, cuja elucidação é cobrada pela opinião pública, privilegiado pelas polícias em todo o mundo como o “filet” da atuação policial e onde frequentemente existe um departamento especializado e mais recursos para a investigação. Assim mesmo, o esclarecimento dos homicídios no Brasil chega a apenas  1/3 dos casos. A taxa de esclarecimento tende a ser maior nos crimes graves como chacinas, sequestros, latrocínios, roubos a banco, e menor nos crimes patrimoniais de menor valor e onde não houve contato entre o autor e a vítima. Assim, a taxa média de esclarecimento de crimes é provavelmente menor do que a encontrada para os homicídios.

Mas de quanto será esta taxa?

Já mencionamos aqui a Pesquisa Perfil das Polícias, organizada pelo Ministério da Justiça desde 2002 e que coleta centenas de informações anuais para a PM, PC e Bombeiros. Analisamos em outro artigo os níveis hierárquicos da PM com base na pesquisa, mostrando algumas inconsistências nas quantidades de efetivo em cada patente. Nas últimas edições da Pesquisa Perfil das Polícias, diversas instituições passaram a responder ao questionário do Ministério da Justiça, que pergunta para as polícias civis, entre outros dados, o total de BOs registrados no ano, total de inquéritos instaurados por portaria, por flagrante e inquéritos remetidos com indiciamento. Tivemos que estimar alguns valores para o Acre, São Paulo e Maranhão, mas feitas estas estimativas e partindo do pressuposto de que o indiciamento significa que a autoria foi razoavelmente estabelecida, é possível dar alguma dimensão ao problema.

Como se vê na última coluna da tabela, a taxa de esclarecimento média de todos os crimes ficou, em 2019, em 6,29%, variando entre 1,15% e 11,95%. É claro que o indiciamento pode ter relação com os casos ocorridos em anos anteriores, mas de modo geral supomos que na maioria dos casos os inquéritos relatados e remetidos têm relação com casos ocorridos no mesmo ano e que os estoques anuais são razoavelmente constantes.

Ao todo, tivemos em 2019 algo em torno de 14 milhões e 700 mil ocorrências policiais. A se fiar nas pesquisas de vitimização, os crimes registrados refletem em média apenas 1/3 dos crimes ocorridos, de modo que podemos considerar para efeitos ilustrativos que 44 milhões de crimes são uma cifra mais próxima da realidade. Isto é quase um crime para cada cinco pessoas num ano.

Fonte: Pesquisa Perfil das Polícias, 2019 – SENASP, MJ

*AC – Usamos o número de flagrantes declarado na pesquisa de 2017 ** PR, MS e AP – estimamos o número de Inquéritos com indiciamento a partir da média nacional, equivalente a 63% da soma dos Inquéritos relatados por portaria + flagrantes *** SP – na ausência dos Inquéritos em Flagrante usamos o número de prisões em flagrante de 2019 para estima-lo, supondo que toda prisão em flagrante gera um inquérito **** MA – estimamos os Inquéritos por portaria e em Flagrante a partir das porcentagens médias nacionais.

Destes 14,7 milhões de registros, apenas 929 mil converteram-se em indiciamentos pela Polícia Civil (6,29%). E como discutido, isto não significa que todos os autores identificados foram presos, seja porque não foram capturados ou porque o tipo de delito e de réu não implicava em condenação ao regime fechado. Destes indiciados, “apenas” cerca de 28 mil entram para o sistema prisional anualmente, que conta com 812 mil condenados em 2020. Trata-se de um funil punitivo gigantesco (chamamos isso de taxa de atrito), que tem na boca 44 milhões de crimes e na ponta 28 mil presos por ano, usando as estimativas para 2019 (taxa de atrito de 0,06%). Este é um dos motivos pelos quais não podemos contar apenas com o sistema de justiça criminal para conter a criminalidade, uma vez que a expectativa de punição no Brasil é baixa. Faz sentido pensar exclusivamente em aumentar penas, como fazem nossos congressistas, quando a expectativa de punição é tão baixa? Qual o efeito intimidação do aumento das penas com uma taxa de atrito de 0.06%? Os cálculos são apenas aproximados, mas servem para dar uma ordem de grandeza ao problema: é muita gente sendo presa, mas assim mesmo o percentual é ínfimo diante da quantidade de crimes perpetrados.

Voltando à tabela e às taxas de esclarecimento por Estado, não parece existir um padrão geográfico nas taxas de esclarecimento. Vemos Estados do Norte no topo (AC, AM, AP) e na base da lista (TO, RR). Do Sul, PR aparece no topo e SC na base. Chama a atenção talvez a presença de três Estados do Centro-Oeste no topo (GO, MT e MS) e a relativa ausência de unidades federativas do Nordeste, com exceção de PE. Tampouco parece haver uma relação com a quantidade absoluta de Boletins de Ocorrência, pois encontramos Estados com poucos registros nos dois extremos. O Distrito Federal, que tem a polícia mais bem paga do País, tem taxa de esclarecimento geral abaixo da média. A pesquisa Perfil da Polícia permite calcular as taxas de esclarecimento específicas para alguns tipos de crime e em algum momento, com tempo e recursos, pretendo voltar ao tema. Trata-se de uma fonte subutilizada pelos pesquisadores brasileiros e pode render muitas análises frutíferas.

Não é caso de nos estendermos aqui nos fatores que explicam a maior ou menor taxa de esclarecimento em cada polícia. Até porque, como discutido, é preciso chegar a uma definição consensual do que seja esclarecimento e calculá-lo de modo uniforme. As taxas de notificação de crimes por Estado também precisariam ser conhecidas, bem como o perfil de crimes em cada local, que afeta esta taxa média. O ponto é que é preciso com urgência produzir estes indicadores, monitorar, incentivar e premiar as unidades que conseguem um bom desempenho, ajudando com recursos humanos e materiais aquelas em dificuldade. A ideia não é punir, mas aumentar a eficiência da investigação.

O baixo índice de esclarecimento de crimes é um entre os muitos elementos que ajudam a entender os níveis de violência e criminalidade no País. Melhorar a taxa de esclarecimento não é a panaceia para todos os males, mas é um dos muitos elementos que devem ser aperfeiçoados. Os dados sugerem que para ser preso, no Brasil, é preciso algum esforço, ser muito burro ou muito azarado. Impunidade ainda é a regra.

O autor (*)

Sociólogo formado pela PUC de São Paulo, com mestrado e doutorado em Ciência Política pela USP, Tulio Kahn é consultor da Fundação Espaço Democrático e do PNUD e foi consultor da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, atuando na Coordenadoria de Análise e Planejamento de 2003 a 2011.

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